Escrito após Dostoiévski ter cumprido sua pena de trabalhos forçados, cujas primeiras notas possivelmente tenham sido elaboradas na Sibéria, o romance Humilhados e Ofendidos (Martin Claret, 2017; tradução, prefácio e notas: Oleg Almeida) foi publicado originalmente em 1861, quando o autor tentava retornar, aos poucos, à cena literária russa.
Prefigurando vários elementos constantes nos seus trabalhos posteriores, em especial nos cinco grandes romances de sua maturidade, vemos uma narrativa em primeira pessoa, cujo personagem-narrador, Ivan Petróvitch - Vânia -, nos remonta, em determinados momentos, ao próprio Dostoiévski: um escritor ascendente, cujo primeiro livro alcançou grande sucesso, que logo se dissipou com a publicação da segunda obra, praticamente relegada ao ostracismo (basta lembrarmos do estrondoso sucesso de Gente Pobre, “o primeiro romance social russo”, segundo Bielinski, e o romance seguinte, O Duplo, que na época tornou-se um fracasso de crítica).
Vânia está à procura de um novo lar, e dentro de um bar acaba observando um senhor, com aspecto famélico, sempre acompanhado de um cachorro em situação ainda pior, a quem chama de Azorka. Pouco tempo depois, o senhor vem a óbito (destino insolitamente compartilhado pelo cão), e Vânia acabará se instalando na casa onde esse estranho personagem morava. A menina que adentra o lugar, dias depois, para visitar o avô (sem saber, obviamente, da morte deste), terá um papel especial nesse romance.
Logo percebemos que Vânia é um rapaz inquieto e que faz várias “viagens”, andando ou correndo de um lado a outro de São Petersburgo como um verdadeiro atleta. Ele visita, sobretudo, a casa dos Ikhmeniov, onde foi criado desde pouca idade e conviveu com Natacha, a quem tem como irmã e confidente. Em seguida, Vânia nos relata a história sofrida dos pais dela, principalmente a de Nikolai, de como servira a um importante figurão, o príncipe Valkóvski, e de como, baseado numa inverdade, o magnata o difamou miseravelmente, acusando-o de roubo.
Dessa contenda surgirá um processo judicial, que se arrastará por anos e alimentará enormemente o rancor mútuo surgido entre patrão e seu ex-subordinado. Mas outro aspecto será decisivo e definitivo, tornando-os inimigos: Aliócha, o filho do príncipe, se apaixona por Natacha. E é correspondido. Para piorar, devido ao conflito entre os pais, ambos decidem fugir e morar juntos.
Isso é um verdadeiro golpe para Nikolai, que se torna amargo e amaldiçoa a filha; e também é um problema para o príncipe Valkóvski, que (ainda) tenta atrair o filho para um casamento com Kátia, uma rica beldade petersburguense. Assim, uma gama de conflitos se entrecruza e Vânia se desloca da casa dos Ikhmeniov para a nova casa de Natacha e Aliócha; depois, de Maslobóiev para a pensão de Búbnova, onde presencia o espancamento da pequena Nelly, a menina que entrou em sua residência pensando estar visitando o avô.
Búbnova esbraveja contra a menina, a humilha em plena calçada. A situação chega ao limite, e Nelly tem um ataque epilético. Vânia, comovido com a garota e indignado com os maus tratos, a “adota”. Nelly, então, passará a morar com ele. A menina tem os sentimentos exacerbados da transição para a adolescência: ora geniosa, ora meiga, ora medrosa… Mas nutre grande consideração por Vânia (que descobrirá que as angústias da garota não podem ser somente creditadas às confusões da puberdade…).
A atmosfera do romance é, via de regra, carregada, com Vânia deslocando-se entre os centros nervosos da narrativa e tendo, por vezes, discussões acaloradas com os personagens. Tais discussões são típicas em Dostoiévski, geralmente envolvendo paroxismos, lances irritadiços, gritos, excesso de amor e lágrimas, perspicácia (sobretudo por parte de Natacha, que não demora a adivinhar a intenção dos seus interlocutores), dentre outros, com Vânia, Aliócha e Natacha tentando costurar uma reconciliação entre Nikolai e o príncipe Valkóvski, a qual malogra tanto da parte do pai de Natacha (que é intrépido e ainda tem seu orgulho ferido) quanto da do príncipe.
Há pelo menos um personagem marcante em cada romance de Dostoiévski. Acreditamos que, aqui, se trata do príncipe Valkóvski, um sujeito que se mostra afável, mas é extremamente dissimulado e esconde vários segredos. Faz de tudo para se aproximar de Natacha, ciente da mágoa surgida entre pai e filha após a abrupta separação de ambos. No entanto, Natacha é uma mulher forte e vai tecendo, aos poucos, todos os fios das intenções do príncipe. Quando o pai de Aliócha vai visitá-la tencionando sua amizade, é praticamente desmascarado por ela – numa das cenas mais emblemáticas do livro, cujas exaltações culminam com Vânia agredindo Valkóvski por conta das calúnias deste e da honra de Natacha.
Assim, em ambientações onde o entendimento é praticamente impossível de se alcançar, com interesses conflitantes e difíceis de se conciliar, com discussões e dissimulações, por um lado, e caçambões de sentimento humano, puro e comovente, Dostoiévski conduz seu romance a um desfecho que, até certo ponto, é surpreendente. Contudo, para além de surpresas e altercações exaltadas, é o próprio frenesi humano que vem à tona, sem máscaras ou rodeios.
Humilhados e Ofendidos é um livro altamente recomendável. Ponto final.
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