Resenha: Os 120 dias de Sodoma | Marquês de Sade


Romance escrito em meados da década de 1780 (e que, segundo uma lenda, só penetrou na literatura mundial por ter sido encontrado em forma de rolo no interior de um consolo utilizado por Sade), Os 120 dias de Sodoma (Penguin Companhia, 2018; tradução: Rosa Freire Aguiar) trata do acordo feito entre 4 dos figurões da França do século XVIII: um bispo, um magistrado, o presidente de um banco e um duque. 

Eles forjam regulamentos e planejam angariar crianças para um verdadeiro harém infernal, num castelo nas entranhas da Alemanha. Assim, arregimentam 4 cafetinas (que contam histórias para “acender” os figurões), 8 fodedores, 16 crianças (igualmente divididas entre meninos e meninas), cozinheiras e demais servidores.

O livro é dividido em 4 partes, sendo a primeira, de fato, a única desenvolvida, tratando das chamadas “paixões singulares”, algumas até risíveis, e envolvem, por exemplo: tara por cabelos, por sugar catarros, suor, sujeira (e haja sujeira), encenações cômicas, encenações de morte etc. 

No entanto, conforme avançamos nas partes seguintes (que são apenas rascunhos dos casos contados, inclusive com comentários de escrita de Sade), a atmofera vai ficando extremamente carregada. Na terceira parte, nos dá vontade de largar o livro; na quarta, temos o resumo da vontade demoníaca do ser humano. Se você, por exemplo, tentar imaginar maneiras de se maltratar uma criança (em todos os sentidos), acredite, o seu pensamento provavelmente é uma das cenas deste livro. 

Sade não é só cruel; é exageradamente cruel. O compêndio de atrocidades nos parece infinito, disposto em crescendo, culminando com as cenas trágicas e animalescas da Quarta Parte. Apesar disso, sabemos que o gênero humano pode comente iguais ou piores atrocidades. As crianças são as principais vítimas, sobretudo na última parte, onde Eros encontra Tânatos. Você pode querer jogar o livro no chão, virar o rosto ante tamanhas atrocidades (a do feto arrancado do útero e queimado em seguida, e a introdução de um pacote de enxofre no lugar onde ele ficava, é aterradora). Além do mais, as 16 crianças são presas fáceis para os prazeres mais hediondos dos quatro “notáveis”, algumas delas (ou todas) chegando a óbito, sofrendo torpezas em todos os condutos, além de perderem dedos e demais membros. 

A prosa sadiana é como a dos demais livros que conhecemos: a mais clara possível quanto às cenas de abuso. Ademais, as conversas que beiram momentos filosóficos entre os quatro figurões são bem elaboradas, embora mescladas com atos de depravação insana. 

O romance baseou a obra cinematográfica Saló (ou Os 120 dias de Sodoma), de 1975, dirigida pelo icônico e polêmico diretor italiano Pier Paolo Pasolini. Se for possível compará-la ao livro de Sade, verificamos que Pasolini (felizmente) nos poupou de algumas das maiores atrocidades descritas na prosa sadiana, incluso assassinatos ocorridos para “potencializar” o prazer físico de seus algozes. 

Sade, sim, foi um precursor das bestialidades inomináveis que correm na deep web. E Deus sabe que tantas atrocidades se escondem lá, coisas que fariam Sade se arrepiar (ou se maravilhar). 

Prosa interessante, mas, em definitivo, não recomendamos a leitura de Os 120 Dias de Sodoma.

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