Resenha: Absalão, Absalão! | William Faulkner


Lançado originalmente em 1936, Absalão, Absalão! (Companhia das Letras, 2019; tradução: Celso Mauro Paciornik e Julia Romeu), de William Faulkner, é um romance tido como gótico do Sul dos Estados Unidos. É composto por alguns relatos colhidos por Quentin Compson (personagem de O Som e a Fúria), acerca da história de Thomas Sutpen, um forasteiro desconhecido que, em certo dia, chega àquela cidade do Mississipi com muitos escravos e o desejo de se tornar grande na terra, ter um nome, iniciar algo como uma dinastia.

Tendo chegado ao Mississipi com parelhas de escravos e um rosto impenetrável, principia na construção daquilo que chamará de “Centena de Sutpen”, uma propriedade grande e invejável. 

No entanto, ao longo da leitura (e da tentativa do próprio Quentin de estabelecer um nexo verossímil sobre a emblemática vida de Sutpen), vemos que os Sutpens estão carregados de acontecimentos ruins, percalços e tragédias, envolvendo desde incesto, miscigenação racial (algo visto como negativo naquela sociedade rural sulista norte-americana) e assassinato. 

Segundo o que sabemos, Quentin tenta juntar os retalhos de relatos para contá-los ao seu amigo Shreve, demonstrando a este a história de alguém que representasse, na verdade, a história de todo o Sul dos Estados Unidos. 

Thomas Sutpen e seu filho, Henry, participam, inclusive, da Guerra Civil entre o Norte e o Sul, lutando a favor dos confederados. Um amigo da família, Charles, que pretende se casar com a filha de Sutpen, Judith, também se torna soldado dessa guerra. Mal sabe ele que sua intenção não pode se realizar (e não será, efetivamente). 

A estrutura do romance é muito interessante, pois duas são as principais fontes de Quentin: a Srta. Coldfield e o pai dele, o Sr. Compson. A Srta. Coldfield não mede palavras para descrever Sutpen: é o Demônio. Por sua vez, ela terá papel no desfecho do livro, na (quase) extinção de toda a casa Sutpen - alicerçada na miscigenação e no incesto (lembrando que estamos falando dos EUA sulistas da segunda metade do século XIX). 

E o casarão Sutpen tem um desfecho que podem nos remeter ao incêndio de Luz em Agosto, mas, enquanto neste livro o incêndio marca um estopim para a caça ao Joe Chritmas, em Absalão, Absalão! o incêndio sela definitivamente (ou quase) a dinastia Sutpen, mal surgida e mal destruída.

Para além da discussão sobre que, para Sutpen, o incesto seria menos imoral que a miscigenação com escravos, creio que este é um livro sobre a desconfiança do leitor perante um narrador parcial: teria tudo aquilo acontecido com os Sutpen, ou a mente de Quentin teria dado sua própría versão da história, funcionando, inclusive, como um tipo de ligação entre arestas obscuras que não eram contempladas nos relatos obtidos? 

Vejo grande chance de isso ter acontecido, e a pergunta final de Shreve, digirida a Quentin, meio que entrega ao leitor algo a ser tratado como verdade: Quentin utilizou a história de um "demônio" para retratar o Sul, com possíveis falsificações nos relatos, porque o próprio Quentin odeia o Sul dos Estados Unidos - aquele Sul escravagista e cheio de imposições. Assim, podemos entender até mais um pouco do que ocorre com ele em 'O Som e a Fúria", livro posterior de Faulkner

Não podemos nos enganar: embora predomine o tempo cronológico (em se tratando dos relatos juntados por Quentin), a prosódia de Faulkner não é algo fácil de se encarar. É como uma correnteza: se você se deixar arrastar impunemente e não prestar atenção na direção da água, pode até sobreviver, mas não vai ter entendido nada do que aconteceu. No entanto, se vencida a correnteza, estará enxuto e satisfeito. 

Absalão, Absalão! é um livro mais que altamente recomendável.

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