O Vermelho e o Negro - Stendhal

Esse é um dos meus livros preferidos, e me provou que clássicos existem para ser lidos e não para enfeitar estante. Exigem paciência, amor e carinho, mas devolvem em dobro. Neste, por exemplo, o autor começa descrevendo uma cidadezinha entediante (Verrières), depois começa a falar do prefeito (chatíssimo) e aí se vão algumas páginas até aparecer um personagem que vale a pena para os padrões... ahn, atuais. É o nosso querido Julien Sorel, e a partir do momento em que ele aparece, esse livro do tamanho de uma Bíblia fica impossível de largar.

Julien é sofrido, bobinho mas ao mesmo tempo muito inteligente e ambicioso: sabe bem o que quer e onde quer chegar: ser rico. Para alguém que nasceu pobre, como ele, ser rico implica ser padre, ainda que ele seja quase ateu e sonhe com a vida militar. Seu ídolo é Napoleão, mas devido ao momento que a França vive, ele não pode nem pensar em deixar as pessoas saberem disso. Sim, ele é duas caras, mas quem é que não é, meu Deus? Por tudo que ele sofre com a família, que o odeia, fica mais do que explicado ele querer uma vida mais segura.

Por falar na família dele, existe um sério conflito de interesses. O velho Sorel é marceneiro, mas Julien é fraco, não tem o menor jeito para o trabalho braçal e vive lendo escondido. Até latim ele aprendeu, com um padre, e é graças a esse conhecimento que ele sai de casa pela primeira vez e "ganha o mundo" para ser professor de algumas crianças: vai morar na casa de ninguém menos que o prefeito da cidade. Os acontecimentos que se seguem são divertidos, emocionantes e muito surpreendentes.

O nosso pequeno Julien é tão orgulhoso e corajoso que parece até meio louco, mas seu lado meigo não pode ser disfarçado. Ele simplesmente rouba o coração da mulher do prefeito, comete adultério, escandaliza a cidade e consegue enfim ser mandado para um seminário - seu objetivo - em Besançon, uma cidade bem maior, onde passa um ano conhecendo de perto a realidade dos aspirantes a padre e descobre que seu sonho é bem mais difícil de realizar do que imaginava. Agradar aos padres exige não tem nada a ver com que tirar notas boas, mas isso é bem melhor de descobrir lendo o livro - que é realmente fantástico. Mas ele finalmente consegue se sair bem e é daí que vem seu maior golpe de sorte (ou azar). Julien Sorel consegue um emprego em Paris, e dessa vez se torna secretário na casa de um marquês riquíssimo.

Ele estranha Paris no começo, afinal é um caipirinha que passou meses isolado do mundo em um seminário. Bem, não se pode culpá-lo pelo que acontece depois. O marquês tem uma filha jovem e muuito bonita. Preciso dizer mais?

Eu sei que o título do livro intimida e não diz praticamente nada sobre a história, mas depois que a gente se empolga isso só deixa tudo mais interessante. Aliás, a impressão que dá desse "vermelho e negro" é que se refere aos dois "amores" que aparecem na vida de Julien. Geralmente falam que é o contraste entre a vida militar/religiosa, ou até de um sangue na batina preta, mas eu boba que só pensei logo no contraste entre o amor "verdadeiro", altruísta, e o amor egoísta, mimado, possessivo, que Julien percebe entre as duas mulheres que se apaixonam por ele. De toda forma, ele inspira paixões proibidas e destrutivas que desde o início sabemos que não vão acabar nada bem.

A forma minuciosa do autor descrever os sentimentos e raciocínios das personagens principais é uma das maiores riquezas do "Vermelho e o Negro", dando realmente vida à alta sociedade francesa dos anos 1830. A igreja e a nobreza permanecem em tanta tensão, com medo de novos ataques revolucionários,  que o nosso adorável alpinista social precisa esconder seus sentimentos evidentes: idolatria por Napoleão, tédio, o horror à ausência de ideias e mesmo de vontade própria que percebe nas pessoas que conhece em seu novo "mundo". Em compensação, o leitor tem acesso liberado às suas reflexões íntimas, expostas com sabor, graça e principalmente humanidade. Um retrato bastante convincente de uma época, temperado por personagens brilhantes e um certo desdém muito reconfortante.

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